cURL: como nos aproveitamos de trabalho não pago 💻
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Sempre que compramos um iPhone, por exemplo, assumimos que as pessoas que escreveram o código foram pagas para tal, certo? Enquanto que isso é verdade para todos aqueles que usufruem de direitos de autor de software, virtualmente todas as empresas tecnológicas utilizam milhares de pequenas peças de código gratuito, que se tornam acessíveis através de projetos open source em sites como o GitHub ou o GitLab.
Não raras vezes, estes developers não se importam de trabalhar sem serem recompensados. Escrever software em open source permite-lhes aguçar as suas capacidades, conhecer novas perspetivas da comunidade ou simplesmente ajudar a indústria ao desenvolver inovações a custo zero.
De acordo com o Google, que mantém centenas de projetos desta natureza, o open source “permite e encoraja a colaboração e o desenvolvimento da tecnologia, resolvendo problemas reais”. Mas quando o software é utilizado por milhões de pessoas e é mantido por uma comunidade de pessoas – ou uma única pessoa, de forma completamente voluntária -, por vezes este processo pode correr muito, muito mal.
O catastrófico bug Heartbleed, em 2014, que comprometeu a segurança de centenas de milhões de websites, foi causada por um problema numa biblioteca open source chamada OpenSSL, que se mantinha com um developer a tempo inteiro e que confiava na sua capacidade de não cometer erros – apesar dos updates e mudanças feitas ao código, utilizado por milhões. Outras vezes, os developers acabam por se fartar e podem simplesmente abandonar os projetos.
É difícil exigir que os programadores que trabalham de graça afastem problemas ou que continuem a manter um software mesmo que já não tenham interesse nele, por qualquer motivo. Ainda assim, muitas empresas tentam fazer isto mesmo e, ao não manterem estes projetos de forma adequada, todo o ecossistema tecnológico acaba por se tornar bastante mais fraco.
E é precisamente por isto que muitos programadores estão a pedir às empresas que lhes paguem - não pelo código, mas pelos serviços de apoio. Um dos melhores exemplos do que aqui falamos chega-nos pelas mãos de Daniel Stenberg. Ele é um desses developers e o criador do cURL, um dos mais conhecidos projetos open source em termos mundiais.
Os developers usam o cURL para transferir informação entre dois sistemas, geralmente numa API em que um serviço precisa de requisitar ou enviar dados a partir de outro serviço. De acordo com Stenberg, o cURL faz parte de milhares de milhões de smartphones, muitas centenas de milhões de televisões e em, pelo menos, cem milhões de carros inteligentes, bem como em todos os iPhones já produzidos e em quase todos os aparelhos modernos em que tocamos todos os dias, sem exceção.
A escala a que este sistema está a ser usado permite-nos assumir que o criador faz a maior parte do trabalho ao mantê-lo, com o apoio de uma comunidade de voluntários. Ainda assim, muitas empresas que usam o código nem sequer sabem a quem é que ele pertence. Daniel vive perto de Estocolomo, na Suécia, e inventou o cURL em 1998. Até hoje, mantém o projeto de forma totalmente gratuita apesar de, recentemente, ter aceitado um emprego numa empresa chamada wolfSSL, que agora lhe paga para trabalhar o mais full time possível.
As empresas que continuam a apoiar-se nesta peça específica de software open source contrata, ocasionalmente, os criadores destes projetos para construírem novas peças. Neste caso, a wolfSSL entregou a Stenberg a tarefa de não só manter o cURL mas também construir formas de suporte técnico para o sistema.
O programador nunca esperou que a sua criação ganhasse tanta popularidade. De facto, demorou vários anos até que Stenberg percebesse que o cURL estava a ser tão amplamente utilizado. Porque o código está aberto ao uso de forma gratuita, não haveria nenhuma razão para que as empresas lhe dissessem que o estavam a utilizar. O developer apenas percebeu que o software que desenvolveu tinha tanto sucesso quando as pessoas começaram a falar consigo depois de verem o seu nome da janela “Sobre” do sistema. “Nunca antecipei nada disto”, chegou a afirmar o especialista, adiantando ainda que se sente aborrecido quando “parece que as pessoas tentam levar vantagem em vez de contribuir para apoiar o projeto, já que tiram tanto partido dele”.
Durante os primeiros 20 anos de existência do cURL, Stenberg diz ter trabalhado no seu tempo livre e conseguiu manter o seu ‘trabalho real’ desenvolvendo software. Manter o projeto, claro, deu muito trabalho: o especialista passou centenas de horas a melhorar o sistema, a resolver bugs e a aperfeiçoar o código. Dos 25 mil updates, feitos no repositório, Stenberg criou 14 mil deles. Nenhum outro developer contribuiu tanto para o software; no máximo, um outro developer contribuiu com pouco mais de dois mil.
A sobrevivência do cURL deve-se a um leque de patrocinadores que financiaram o alojamento do projeto, bem como outros custos – apesar de Stenberg afirmar que nenhuma grande empresa contribuiu –, mas também a contribuidores como este especialista, que ofereceu totalmente o seu tempo. O developer diz que acredita ser importante que o open source exista e que nunca se arrependeu de criar o software neste formato.
O que o deixa frustrado é apenas uma coisa: quando as empresas exigem a sua ajuda. No último ano, uma empresa estrangeira contactou-o em pânico, após ter pausado um upgrade ao firmware em milhões de aparelhos, devido a um problema com o cURL. “Tive de lhes explicar que não podia viajar até outro país de forma tão repentina para os ajudar a resolver este problema, porque eu trabalho no cURL no meu tempo livre e tenho um trabalho a tempo inteiro”, diz.
Mas porque realmente se importa com o projeto, Stenberg procurou um amigo para ajudar. Ele sim, viajou para o país em questão e ajudou a resolver a questão. Para compensar os programadores open source por este tipo de serviço, Stenberg acredita que as grandes empresas tecnológicas deviam pagar por contratos de apoio técnico. Dessa forma, além de recompensar os developers pelo tempo empregue, ajudariam a manter os projetos em funcionamento.
Com o seu trabalho para a wolfSSL, Stenberg espera conseguir convencer empresas como a Apple a pagar pelo suporte, mas esse esforço ainda está numa fase muito inicial. Os contratos de apoio técnico não são propriamente baratos, e muitas vezes chegam a atingir os milhares de dólares em troca de ajuda para usar projetos e suporte especializado quando algo corre mal. No entanto, o tipo de empresas que precisam deste serviço são tipicamente abastadas.
Ainda não é claro que as empresas estejam interessadas neste tipo de contratos. Quando o fundador do cURL pediu à empresa que lhe pagasse as despesas de deslocação, quando lhe foi pedido que viajasse para outro lado do mundo, ouviu um não como resposta. É isto que o deixa realmente frustrado. “Acho que fico aborrecido quando parece que as pessoas se aproveitam de nós em vez de contribuir a sua parte para o projeto de que estão a usufruir”, diz.
Mas ele ainda vê os contratos de suporte como uma solução a longo prazo para manter o open source: “O dinheiro precisa de ir para os autores e não apenas para os curadores ou grandes projetos/empresas open source”.
Muitos dos que fazem parte da comunidade open source opõem-se à ideia de que devem ser pagos de qualquer forma, o que permanece um tema controverso. Muitos acreditam que a monetização vem matar o conceito de ‘gratuitidade’ – mas a realidade é que as pessoas que trabalham sem receber nada em troca também precisam de comer e alimentar a família, tal como qualquer outra pessoa.
Hoje, quando um developer ou uma empresa enviam um email a Stenberg pedindo-lhe ajuda o mais rapidamente possível, ele diz que a sua atitude tem sido diferente: agora, o programador responde que “talvez, mas só talvez, possa ajudar em troca do pagamento de um contrato de apoio técnico”. Questionado sobre se vai manter o cURL para sempre – agora que já passaram 20 anos – Stenberg afirma que não tenciona abandonar o projeto que já se tornou numa grande parte da sua vida. “Assumindo, claro, que arranjo forma de ser pago para tal”, adianta.
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